2 de julho de 1996

Viagem ao Reino de Marrocos


Conjugar os interesses de possuidores de trails de apelido africano com possuidores de Guzzi's e afins foi quase tão difícil como conseguir convencer as respectivas famílias a deixarem-nos queimar sozinhos dois fins de semana, quatro dias de férias e um feriado para participar nesta aventura. Os argumentos usados não irão ser aqui referidos, mas posso-vos desde já adiantar que esta viagem saiu-nos cara...

Assim, e depois de algumas desistências por motivos vários, (estranhamente ninguém disse "a minha mulher não me deixa ir..."), formou-se um grupo de nove pessoas cujo único denominador comum era a vontade de passar uma semana em Marrocos, pois até uns quantos se fizeram deslocar de jipe...
Após longas e calorosas discussões (leia-se reuniões), foram tidas em conta as seguintes considerações na elaboração do roteiro:

  • Tempo disponível: 5 noites e 6 dias e meio para cerca de 3.000 Km
  • Artigos e dicas da Motociclismo e da Moto-Jornal
  • Vontade dos Trialistas em caírem em areias Africanas
  • Medo de alguns em dormir em parque de campismo
  • Satisfazer a vontade dos mais endinheirados.
  • Informações turísticas do I.N.T.M. (Instituto Nacional de Turismo de Marrocos)
  • Vontade de outros de não andarem só de mota, mas aproveitarem também, para conhecerem um pouco da cultura de Marrocos
  • Experiência anterior de três dignos Motards
  • Gastar pouco, mas sem nunca por em causa o caviar e o champanhe de cada dia...
  • Versatilidade e disponibilidade de uma tal Guzzi (leia-se peça de museu)
  • Last but not least: Andar de Mota



    1º Dia: Beja - Algeciras

    Jipe e motas carregadas e lá partimos nós estrada fora para devorar os entediantes quilómetros que nos separavam de Algeciras. Nem o atraso à partida, de mais de duas horas, do pessoal do jipe nem o facto de ter visto um saco cama igualzinho ao meu no meio da estrada, a que se seguiram outros tantos parecidíssimos com os dos meus companheiros, nos tirou a boa disposição. Após a operação de salvamento de parte da bagagem que seguia no atrelado do jipe (que por sinal não era um Jeep mas sim um Toyota...), e que tinha ficado espalhada por alguns quilómetros de estrada houve uns quantos elementos que ficaram proibidos de lhe mexer!

    Chegados a Algeciras já depois da meia-noite, comprámos os bilhetes do ferry numa das várias agências que se encontram abertas 24 horas por dia, estacionámos as motos na bicha do ferry e dormitámos junto delas pois não nos parecia boa ideia deixa-las sozinhas e procurar um local para dormir em Algeciras. (o primeiro ferry parte às 7.30h e queríamos ter a certeza de ir nele)


    2º Dia: Algeciras - Beni-Melal

    De manhã lá reunimos os ossos, agradecemos o facto de os jardineiros de Algeciras se levantarem cedo para ligar o sistema de regra dos jardins (não há casa-de-banho na estação fluvial!), e lá embarcámos no Ferry. Após a travessia do estreito, o continente Africano esperávamos e com ele as, por vezes, exasperantes diferenças culturais. Assim e chegada a nossa vez de passar a fronteira fomos surpreendidos por um esquema burocrática no qual se deve ter inspirado Goscinny quando escreveu os doze trabalhos de Asterix. Aqui há duas hipóteses ou se paga a quantos senhores prestáveis que se oferecem para tratar dos papeis, ou então, somos enviado de guichet em guichet pois parecem estar todos combinados uns com os outros. Uma hora depois (não pagamos!...) lá seguimos viagem convencidos que o melhor é entrar no ritmo local e não ter pressas.


    O nosso objectivo era rumar o mais rapidamente possível para Sul e para o interior deixando para trás o incaracterístico litoral. No entanto recomendo uma paragem na região da floresta de Cedros onde em acessíveis percursos fora de estrada se podem ver macacos em liberdade numa floresta de rara beleza. Devido ao adiantado da hora decidimos ficar num motel na beira da estrada a uns 30Km de Beni-Melal; uma óptima escolha pois o preço foi óptimo (7000$00 - 2 pessoas), com direito a piscina e ar condicionado e, melhor que tudo, era murado e não tivemos preocupações com a carga das motos e do jipe. Aliás, adoptámos este método no resto da viagem: procurávamos um hotel na estrada a umas dezenas de Km's da cidade que queríamos visitar evitando assim as confusões e perigo de sermos roubados.



    3º Dia: Beni-Melal - Marrakesh

    Na viagem para Marrakesh fizemos um pequeno desvio para visitar as cascatas de Ouzoud. É impressionante como no meio de toda aquela aridez surgem umas impressionantes quedas de água com mais de 200m de altura. É imprescindível descer e tomar um banho no lago por elas formado. Rumámos então a Marrakesh e assentámos arraiais noutro hotel a cerca de 20Km da cidade (9000$00 - 4 pessoas), tomámos um banho na piscina e dirigimo-nos a Marrakesh onde foi preciso pagar para nos guardarem as motos, para nos guiarem pela praça, para usar os telefones públicos, para nos levarem ao restaurante... enfim, imaginem uma cidade em que metade da população tem como fonte de rendimento esquemas similares aos dos arrumadores de carros de Lisboa.



    Assim após umas voltas na praça Jemaa el Fna onde se podem ver lado a lado encantadores de serpentes, dentistas, vendedores, etc, etc (a não perder o sumo de laranja feito na hora por menos de 40$00). Seguindo o que estava combinado, fomos jantar a um restaurante "típico" com as dimensões de um campo de futebol, e decoração estilo "mil e uma noites" em que o campo central é usado para espectáculos de folclore e demonstrações de perícia equestre. Não recomendo, quer devido ao seu elevado preço (jantar + espectáculo + bebidas 9000$00), quer ao facto de os restantes comensais serem maioritariamente reformados americanos e ingleses e o ambiente ser do tipo casa de fados para turistas no Bairro-Alto.


    4º Dia: Marrakesh - El-Kella-M'Gouna:

    De manhã após uma rápida visita ao palmar de Marrakesh (o maior do mundo), deambulamos mais de uma hora em Marrakesh em busca da saída para Ourzazat e finalmente dirigimo-nos
    para o interior.


    A passagem do Atlas faz-se por uma estrada com paisagens magníficas que sobe a mais de 2500 m de altitude onde chegamos mesmo a avistar neve nos cumes mais elevados, para depois descermos em direcção a Ourzazat (a porta do deserto). Daqui para a frente a paisagem muda significativamente e as zonas verdes são apenas estreitas faixas que seguem os rios (oueds), que escolheram o lado errado do Atlas indo assim perder-se no deserto.
    Seguimos então a estrada que estende ao longo do vale do Dadés e assentamos arraiais em El-Kella-M'Gouna, a cidade mais perto das gargantas do Dadés. O hotel, único na cidade digno deste nome, tinha piscina e está situado numa colina sobranceira à cidade. Daí podemos observar a cidade em toda a sua diversidade de cores, sons e cheiros; e garanto-vos que não tem nada a ver com o ambiente criado no espectáculo a que assistimos em Marrakesh na noite anterior.


    5º Dia: El-Kella-M'Gouna - Algures no Erg Chebi


    De manhã cedo, e após mais uma conversa com o pessoal das customs que estava um pouco renitente em fazer a ligação por fora de estrada entre as gargantas do Dadés e do Todra, (e com razão como se veria mais à frente!), lá fomos nós fiados no guia Michelin que dizia que era possível fazer a ligação em 4L.

    O início da ligação faz-se por alcatrão a que se segue um percurso de estradão de terra que acaba numa garganta impressionante. Daqui para a frente a estrada vai estreitando até que desemboca numa pequena povoação. Este percurso foi dos mais belos que fizemos em Marrocos. À saída da aldeia cruzamo-nos com um grupo de motociclistas completamente equipados que vinham em sentido oposto e que ficaram atónitos quando viram uma Guzzi carregada de malas com os cromados a brilhar, passar por eles. Daqui para a frente, e seguindo as indicações obtidas no "Café" da aldeia seguimos um trilho que serpenteava a montanha, para depois descer gradualmente até às, ainda mais espectaculares, gargantas do Todra durante uns 70 longos e suados quilómetros (feitos em 1ª - 2ª pelas motos de estrada). Sem querer desencorajar ninguém não é percurso que se faça duas vezes com uma mota de estrada...



    De volta ao alcatrão contámos os feridos (uma tampa lateral da virago amolgada, umas quantas peças soltas da Guzzi, uns quantos enlatados rebentados nas malas, o reboque amolgado...); ouvimos umas quantas bocas do pessoal do jipe que tinha saltado e comido pó durante horas. tentámos explicar que sim, que sabíamos que havia uma estrada de alcatrão, mas que...; e lá seguimos na direcção de Erfoud.
    A paisagem a partir daqui torna-se ainda mais desértica, chegamos mesmo a encontrar um pequeno grupo de camelos que pastava, não percebi bem o quê, na berma da estrada. A umas dezenas de quilómetros de Erfoud a estrada começou a estreitar pois as areias invadiam a estrada, chegando mesmo, nalguns pontos a corta-la (Passar uma dezena de metros de areia a 120 Km/h é brincadeira que não aconselho a ninguém).

    Chegamos a Erfoud, contra os nossos planos, ao anoitecer. Após uma PEQUENA discussão para decidirmos entre pernoitar na cidade ou fazer mais uns 30Km fora de estrada à noite para ir dormir a um dos pequenos albergues que ladeiam o Erg Chebi, decidimo-nos por esta última hipótese. Contratamos um guia, que foi à pendura numa das motos, não sem antes um grupo de guias rivais nos ter avisado que ele tinha roubado uns turistas na semana anterior...


    Com o credo na boca lá partimos em direcção ao deserto. É incrível como o guia se conseguiu orientar de noite no deserto. Tudo é areia, (uma mais solta do que outra como haveríamos de constatar mais tarde...), a "pista" não é mais do que um emaranhado de rodados em todas as direcções e foi com satisfação quando uma hora depois avistámos uma pequena luz e os contornos de uma construção. Nem o facto de os duches não funcionarem há pelo menos uns anos (ao contrário do que nos tinham dito), o frigorífico não funcionar e ninguém ter querido ouvir o relato do colega que espreitou a cozinha; estragou a magia que é passar uma noite no deserto.

    Quanto à dormida há duas hipóteses, ou os quartos, que eu não descrevo para não ferir susceptibilidades, ou o terraço. Unanimemente fomos buscar os sacos-cama, que tinham quase tanto pó como nós e adormecemos a contar estrelas.


    6º Dia: Algures no Erg Chebi - Ifrane


    Ao acordar pudemos finalmente ver onde é que estávamos: dum lado o deserto, do outro o Erg Chebi (uma imensa duna de areia solta com mais de 70Km de extensão). Após a possível "higiene" matinal, seguimos em direcção a Rissani e ao alcatrão. Estes 60 Km foram um verdadeiro prazer, especialmente a travessia de um lago salgado seco, completamente plano, que permitiu rolar a mais de 130 Km/h... (finalmente as Trails estavam a ser compensadas pelos suplícios passados nas auto-estradas).
    A entrada em Rissani faz-se através de uma zona de fech fech (pó muito fino), que tem a particularidade de se infiltrar por todo o lado e favorecer os "atascanços". Foi com satisfação que pisámos de novo o alcatrão. Nova reunião e mudança de planos; íamos tentar andar o mais possível de modo a tentar diminuir os Km's da última etapa. Este plano foi parcialmente sabotado pelo jipe que perdeu um dos parafusos de apoio do motor, (possivelmente este foi-se desapertando devido ao efeito de chapa ondulada do deserto), despedaçando parte da ventoinha do radiador e obrigando-nos a perder umas horas. Ajudados por dois Marroquinos lá resolvemos o problema e seguimos viagem. À medida que íamos avançando para Norte o deserto ia ficando para trás e quando eu pensava que Marrocos não me ia surpreender mais nesta viagem eis que chegamos a Ifrane. Ifrane é uma estância de inverno que não tem nada a ver com as cidades marroquinas que tínhamos atravessado. As ruas estão impecavelmente limpas, os espaços verdes jardinados, a própria população parece que saiu de uma qualquer estância de inverno europeia.


    Escolhemos para pernoitar um hotel de cinco estrelas (cerca de 7000$00 por pessoa), pois achámos que merecíamos uma compensação pelos extenuantes dias anteriores. No entanto existem outros hotéis mais em conta, e até um parque de campismo. Após termos encontrado um soldador para nos reparar a lança do reboque que ameaçava divorciar-se do jipe a todo o momento, fomos jantar e já confortavelmente deitado no hotel em plena montanha, com o telecomando da televisão na mão, a ouvir o suave ronronar do ar condicionado pensei que ainda ontem à noite estava num saco-cama cheio de pó no deserto, as voltas que a vida dá...



    7º Dia: Ifrane - Beja

    O regresso não teve história: O incaracterístico norte Marroquino, o pesadelo da fronteira, as bombas de gasolina, as entediantes auto-estradas espanholas, as bombas de gasolina, a ventosa via do infante, as bombas de gasolina, a IP2, as bombas de gasolina, as bombas de gasolina...., e por fim a agradável sensação de ter chegado, seguida, uns dias depois, pelo desgosto de ter chegado.

    Este Artigo foi publicado na Revista MOTOCICLISMO, tendo ganho o 1º prémio do passatempo "Férias de Mota".
     

    ROTEIRO
    (Leia-se quadro de intenções)